7/30/2016

KAFKA, A MENINA E A BONECA



KAFKA, A MENINA E A BONECA

Joaquim Branco

Entre as monumentais obras de Franz Kafka, não se poderia supor que o autor tcheco tenha deixado para a posteridade o que se poderia chamar de um livro infantil...
Pois é. Eis que chega ao meu conhecimento (e mãos) “Kafka e a boneca viajante”. Uma narrativa sobre cartas escritas por ele para uma menina que encontrou certo dia no Parque Steglitz, em Berlim.
O fato é que as verdadeiras cartas se perderam, apesar dos esforços de pesquisadores em encontrá-las. Mais recentemente o escritor espanhol Jordi Sierra i Fabri – com a colaboração das lembranças de Dora Dymant, moça que morava com Kafka na época – as recompôs, e aí nasceu o livro. A história que vou resumir a seguir, portanto, é real.
Um ano antes de morrer, em 1923, quando Franz Kafka passeava pela Praça Steglitz, encontrou uma menina chorando muito. Elsi – era o seu nome – havia perdido sua boneca Brígida.
Foi consolada por Kafka que lhe disse que Brígida estava apenas viajando e não havia se perdido. Buscando uma maneira de resolver o problema, Franz começou a escrever cartas (como se fosse a boneca Brígida) a Elsi e a entregá-las de tempos em tempos, fingindo ser um carteiro.
As cartas e os encontros na praça foram-se sucedendo para alegria da menina e do próprio autor-personagem-carteiro.
Deixo de contar o que se passou depois e o final para não estragar o prazer de possíveis leitores da obra, mas continuo minhas impressões de leitura.
Confesso que, nas primeiras páginas, o autor do livro não me convenceu com sua escritura. Como aceitar que alguém pudesse se fazer de Kafka, um dos maiores escritores do século XX? Seria um salto mortal contra a eternidade e a própria literatura. Aos poucos, porém, Jordi Sierra, ao mesmo tempo que se apropriava da ideia de Kafka, parece que foi incorporando o que seria a linguagem original do texto, e me fazendo ‘lembrar’ de que estava ali subjacente o próprio ficcionista Franz Kafka. Tive quase certeza de que me encontrava com o grande autor saindo dos tortuosos corredores de “O Processo” e se transvestindo na versão simples e purificada da sua antípoda literária.
Assim, comecei a ver a narrativa com a leveza e a naturalidade que ela adquirira ao correr das páginas.
Kafka aparecia como autor e personagem, narrado em terceira pessoa, em fuga de sua ficção habitual. Transformou-se no carteiro que levava felicidade para uma menina anônima que encontrou por acaso num jardim.
No transcorrer do texto, a imaginação de Jordi o leva a reflexões nas mais diversas áreas do conhecimento, enquanto narra a história.

“A única coisa que sabia por intuição era que as crianças destilavam egoísmo. Fazia parte de sua própria inocência. Egoísmo por precaução, por senso de sobrevivência, por necessidade.” (p. 52)

Considerações do personagem-autor sobre as bonecas são inevitáveis para o convencimento de que Brígida estava apenas viajando e não havia se perdido:

“Sabe, sei de bonecas que nunca fazem sua viagem. Têm medo. Ficam com suas meninas, mas não por amor a elas, ao contrário, ficam por medo.” (p. 52)

E a justificação da entrega das cartas pessoalmente e não nas casas propicia outro diálogo entre Kafka e Elsi:

“ – Os carteiros não entregam as cartas nas casas?
– Os carteiros normais entregam, mas não os carteiros de bonecas. As cartas de bonecas são especiais, porque são diferentes. Têm de ser entregues às suas destinatárias em mãos.” (p. 27)

O carteiro não poderia faltar ao próximo encontro marcado e fala para si próprio:

“Estava em jogo uma esperança.
O que há de mais sagrado na vida.” (p. 32)

Nos diálogos entre o carteiro e Elsi há momentos especiais, como nestas comparações:

“– Você sabia que o céu de Paris é da cor de seus olhos quando você sorri e que as nuvens são como os pêssegos que se formam no seu rosto?” (p. 61)

Kafka e a sua mulher Dora também comparecem a algumas cenas:

“– Só você poderia pensar uma coisa dessas, querida. Te amo.
Salvar uma menina não era salvar o mundo?” (p. 74)

A referência aos animais como defesa para sua sobrevivência, na afirmação do carteiro para a menina:

“– ...quanto a mim, seria incapaz de matar um leão ou um elefante. Totalmente incapaz. Para que destruir uma vida? Esses animais selvagens são tão lindos, Elsi.” (p. 83)

A descrição do mundo – simples, direta:

“– Às vezes percebo que o mundo é o lugar mais bonito que existe, e vejo a imensa sorte que temos de viver nele. Precisamos cuidar dele e protegê-lo para deixá-lo aos nossos descendentes, da mesma forma que um dia o recebemos de nossos pais. Somos apenas hóspedes momentâneos de sua generosa grandiosidade.” (p. 85)

Termino com o diálogo entre a boneca Brígida e a menina Elsi, que dá talvez mais significado à temática do(s) autor(es):

“ – ...nós duas vamos saber que nunca chegaríamos tão longe sem a outra. Viveremos cada uma na memória da outra, e isso é a eternidade, Elsi, porque o tempo não existe para além do amor.” (p. 87)

Esse não é o final – que prometi não revelar –, mas bem poderia ser o deste livro que ganhou o Prêmio Nacional de Literatura Infantil e Juvenil do Ministério da Cultura da Espanha em 2007, e, merecidamente, acredito.

*FABRA, Jordi Sierra i. Kafka e a boneca viajante. Trad. Rubia Prates Goldoni. Ilustrações de Pep Montserrat. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009, 127 p.