12/17/2012

UM CAVALEIRO NA NOITE DE NATAL



(fotomontagem: Natália Tinoco)

Há um escritor que se destaca como pioneiro da caminhada do homem na noite absurda e caótica do século XX: é Franz Kafka, um judeu tcheco incrivelmente genial que nasceu em 1883 e viveu apenas 41 anos. Dele é o conto de Natal que vou comentar hoje, “O Cavaleiro do Balde”(1), escrito no inverno de 1916(2).

Poucos sabem deste relato, e quem nunca leu Kafka pode até esperar por um conto de fadas, só que, com roupagens kafkianas, tudo muda. A aparente simplicidade da escritura de Kafka não encaixa como uma luva no seu tema nervoso e suprarreal; pelo contrário, causa uma instabilidade semântica em quem o lê. No entanto, e positivamente, ele premia o leitor com uma comunicação – embora estranha – essencial a toda a humanidade.

Naquele inverno de 1916, faltara carvão para os moradores dos arredores da rua dos Alquimistas, em Praga, capital da antiga Tchecoslováquia, onde morava o nosso autor. Pode ter sido essa a ambiência que motivou a história. Para nós torna-se difícil até imaginar como o inverno em certas noites na Europa Central é terrível, e como o carvão, naquele tempo, era a salvação contra o gelo que penetrava até no coração das pessoas.

Eis o pano de fundo desse miniconto de pouco mais de uma página: Um pobre homem. Praga. 1916. Uma tenebrosa noite de inverno.

Com um balde na mão, fingindo cavalgá-lo, nosso protagonista chega à porta de um homem que vende carvão, e ensaia um monólogo interior:
“[...] não posso morrer congelado; atrás de mim a estufa impiedosa, à minha frente o céu igualmente sem pena.” “[o carvão] significa para mim o próprio sol no firmamento”.(3)

Seu apelo vem agora em forma de diálogo:
“Por favor, carvoeiro, me dê um pouco de carvão. Meu balde já está tão vazio que posso cavalgar nele. Seja bom. Assim que puder eu pago.”(4)
Embora o carvoeiro não o ouça bem, sua mulher, contrariamente, finge não escutar a súplica do pobre e permanece tricotando à beira da estufa. Mas a insistência é tanta que, a pedido do marido, vai até a porta de entrada, e a ela ele se dirige agora:
“Senhora carvoeira! Respeitosa saudação. Só uma pá de carvão, bem aqui no balde. Eu mesmo o levo para casa. Uma pá do pior carvão. Evidentemente pago tudo, mas não agora, não agora.”(5)

A interferência do Narrador (ou do personagem em discurso indireto livre), que vem agora subsequente à fala do Cavaleiro, é um golpe mortal nas suas pretensões, e vai preparar, como uma armadilha, a negativa da mulher do carvoeiro que viria posteriormente. Assim se estrutura o texto:
“Como as duas palavras ‘Não agora’ parecem um som de sino e como elas se misturam perturbadoramente ao toque do anoitecer que se pode escutar da igreja vizinha!”(6)

Novamente a mulher do carvoeiro se volta para junto da estufa, abandonando o homem lá fora. O carvoeiro agora, porém, ouve os chamamentos, tenta ajudar o homem (que via nele sua única esperança), mas a mulher o impede de todas as maneiras e o convence a ir-se deitar por causa de uma tosse.

Vou buscar nas meditações do diário de Kafka um intervalo para este conto, das quais bem poderia ter derivado sua massa ficcional:
“O verdadeiro caminho passa sobre uma corda que não está estendida no espaço, mas quase ao rés do solo. Parece destinada a fazer tropeçar e não a ser percorrida.
Há dois pecados humanos capitais dos quais derivam todos os outros: a impaciência e a preguiça. Por causa da impaciência, foram expulsos do Paraíso. Por causa da preguiça não regressam lá.” (7)

De volta ao conto, estamos no final, quando o Cavaleiro se desespera num apelo inútil que Kafka traduz por meio de uma linguagem propositadamente infantilizada:
“Você é malvada! Pedi uma pá do pior carvão e você não me deu.”(8)

A derradeira fala do Cavaleiro – tomando as rédeas da narração – interpreta o início de sua nova ‘viagem’, para penetrar definitivamente no território do próprio mistério kafkiano que finaliza a história:
“E com isso ascendo às regiões das montanhas geladas e me perco para nunca mais.”(9)

Referências bibliográficas:
1 Kafka, Franz. O cavaleiro do balde. Trad. Modesto Carone. In: Folha de S.Paulo, São Paulo, 22.10.1995, p. 8.
2 Esse conto foi teatralizado por mim em 1998 e apresentado por alunos de Letras na FIC, em Cataguases, com o título de O Cavaleiro do Sr. K, sob a direção de Carlos Sérgio Bittencourt. A protagonista era a acadêmica Denise Mathias.
3 Kafka, op.cit., p. 8.
4 Ibid..
5 Ibid.
6 Ibid.
7 Idem. Antologia de páginas íntimas. Trad. Alfredo Margarido. Lisboa: Guimaraes Editores, s/d, p. 171.
8 Idem., op. cit., p. 8.
9 Ibid., p. 8.



Sonia Regina Tinoco - efeitos de som.